Da Enxada à Cátedra [ 98 ]

O Entardecer

Na medida em que a vida avança e os anos se somam em décadas, uma depois da outra, a natureza e os objetos das reflexões diminuem gradativamente em número, mas em compensação aqueles que perduram, ganham em importância existencial. Aos vinte anos olhávamos em nossa volta e percebíamos o mundo como um cenário feito de múltiplas possibilidades. Caminhos em muitas direções nos convidavam a percorrê-los. Percebíamos o mundo como um cenário de inúmeras alternativas para planejarmos os rumos da nossa existência, realizarmos os nossos sonhos e concretizarmos os nossos ideais. A imaturidade e a falta de experiência cobraram em não poucas ocasiões um preço alto. Não poucos sonhos mostraram-se quimeras fugazes, outros tantos, utopias impossíveis. Opções para darmos rumos à vida que pareciam definitivas, mostraram-se equivocadas no decorrer dos anos. Para não sucumbir em tais situações foi preciso recorrer a correções de rota que, aparentemente, poderiam parecer rupturas pela raiz com o passado. Objetivamente falando, porém, não passaram de escolhas ousadas para não sacrificar a linha mestra da coerência que tínhamos traçado para a vida. E assim nos empenhamos na compreensão da vida e das vivências pessoais, dos relacionamentos com as pessoas, da atividade acadêmica, da procura de soluções para as perguntas de fundo da existência, da busca de respostas satisfatórias pelo sentido e o lugar que no universo cabe à natureza, ao homem e a Deus. Alinham-se nessa lógica também situações limites em que a nossa resistência física, psíquica e espiritual, foi posta à prova próxima ao sobre-humano. Se corretamente entendidas e avaliadas, porém, essas eventualidades que nos surpreenderam na nossa caminhada ao longo dos anos, tinham o poder de depurar, selecionar, descartar, dar valor ao verdadeiro, e dessa forma converter a “Geschenkte Zeit” – como diriam os nossos antepassados, ou “o tempo que nos ainda é reservado como uma dádiva valiosa” – no coroamento prazeroso dos muitos sonhos que alimentamos e numa lição proveitosa para os que continuam privando conosco.

E, para não estagnar em divagações genéricas, julgo oportuno refletir mais a fundo sobre aspetos da minha trajetória não faltando muito para um século, que de alguma forma perpassam subliminarmente, mais nas entrelinhas do que propriamente nas linhas, os registros e as reflexões sobre a caminhada da “Enxada à Cátedra”. Como já mencionei mais acima a minha família, a começar pelos avós e tios, tanto da parte da mãe como do pai vinham a ser profundamente religiosos. Três tias, irmãs do meu pai foram religiosas franciscanas e dois tios sacerdotes e um tio e uma tia irmãos da minha mãe seguiram o mesmo caminho. E a tradição teve continuidade na minha família. Dos oito irmãos dois jesuítas, um seminarista candidato também a ser jesuíta e uma irmã religiosa franciscana. Somando a isso um respeitável número de primos e primas enveredou pelo mesmo caminho. Despertei para a vida respirando essa atmosfera de religiosidade realimentada sem sofrer continuidade pela educação recebida dos pais, as orações diárias antes e depois das refeições e antes de dormir, a catequese na escola, a assistência dominical à missa, somado aos encontros periódicos dos irmãos religiosos, despertou em mim, ainda criança, a vontade evoluindo para uma decisão, de seguir o mesmo caminho. A opção foi-se consolidando durante os quatro anos de frequência da escola comunitária. Ao concluir esse período falei com meu pai e minha mãe da vontade de entrar no seminário dos jesuítas em Salvador do Sul. Concordaram sem restrições mas deixaram claro que no momento em que por uma razão ou outra decidisse voltar para a “enxada” não haveria nenhum problema. Foi assim que em fevereiro de 1942 com 12 anos recém completados, entrei no Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul para cursar o ensino médio, o “ginásio” concluído em 1949, então com quase 20 anos. Como também já destaquei mais acima o “ficar padre ou religiosa”, vinha a ser na prática a única via da época para um menino ou menina da colônia de 11 ou 12 anos continuar os estudos. Também já apontei que seguramente 70% ou mais desistiam da vida religiosa e seguiam outro rumo ou voltavam “para a enxada”.

Eu, da minha parte, encontrei no Colégio Santo Inácio tudo do que precisava. Em primeiro lugar uma programação acadêmica inspirada orientada pela “Ratio Studiorum” dos jesuítas oferecendo uma sólida formação acompanhada dos instrumentos indispensáveis para o acesso ao nível superior e partir daí para uma especialização tanto nas ciências naturais, quanto na filosofia, nas ciências humanas, nas letras e artes. Em segundo lugar um corpo docente composto exclusivamente de jesuítas altamente qualificados pelo tirocínio obrigatório a todos os membros da Ordem. Em terceiro lugar espaço mais que suficiente para desenvolver atividades e adquirir conhecimentos complementares à formação formal. Em quarto lugar uma sólida formação religiosa, doutrinária e ascética em vista do cumprimento da missão apostólica a ser cumprida na pastoral, no magistério em todos os níveis e modalidades, na ciência, nas letras ou artes. Em quinto lugar, a rotina do regime de internato exigia uma programação prévia para disciplinar as demandas diárias.

Foi neste contexto da formação no nível médio que foram-se desenhando e consolidando os contornos que moldaram a minha maneira de conceber o homem e sua história incarnada no contexto histórico e geográfico concreto em que me cabia cumprir a minha missão de vida. Como, após o ginásio ou formação no nível médio, entraria na ordem dos jesuítas, uma das características de como cumprir a missão missionária na Igreja, isto é, “A conquista Espiritual” pressupunha uma disciplina como que militar, como descrita por Ruiz de Montoya. Em outras palavras. A Companhia de Jesus, melhor os jesuítas, inspirados no passado militar do seu fundador, o capitão comandante da fortaleza de Pamplona, assumiam-se como brigadas de assalto e conquista a serviço da Igreja tendo como lema: “diversa loca peragrare – percorrer os mais diversos locais do mundo”.

Acontece que um mínimo de disciplina vem a ser a precondição para o êxito em qualquer atividade a que as pessoas se dedicam, desde as mais modestas coletando lixo, fazendo faxina numa casa, cuidando de um a plantação, servindo de ajudante de pedreiro e tantas outras, passando pela imensa gama de profissões liberais, na administração pública e privada, no exercício da política e evidentemente nas forças armadas. Para mim, pelo menos, o elemento disciplina fazendo parte de como lidar com os pequenos e grandes desafios do dia a dia, foi um dos recursos mais importantes para não perder o norte em situações que exigiram correção radical de rota com consequências profundas de curto, médio e longo prazo para o futuro da vida. Para mim os episódios que envolveram o meu desligamento da Ordem dos Jesuítas e a redução ao estado laico, foram a fase mais dramática. Mas esse episódio pretendo detalhar mais abaixo. De qualquer maneira, se no momento em que, aos 94 anos, registro essas recordações, gozo de uma saúde física e, principalmente mental em boas condições, credito-a à velha guarda dos jesuítas e seu modelo de educação ginasial praticado no lendário Colégio Santo Inácio em Salvador do Sul. Aos mestres de então minha eterna gratidão e que descansem na paz do Senhor. Guardo na memória com carinho e admiração os nomes e as personalidades de todos eles.

Os 15 anos que se seguiram da formação no nível superior dentro da Ordem aconteceram no mesmo espírito e prática de disciplina que marcou o ritmo do quotidiano do ginásio. Submetido a esse a essa dinâmica dos 12 aos 33 anos o resultado não tinha como ser outro. A disciplina foi-se amalgamando com os demais traços da personalidade, fazendo parte existencial da maneira de ser, como que um estado de espírito. Sem uma disciplina praticada num clima de razoabilidade, deixando espaço pleno à liberdade de escolha de como dar conta das linhas mestras prescritas pelos conteúdos das diversas etapas da formação, dificilmente teriam levado aos resultados pretendidos.

Entre as reflexões ao “entardecer da vida” um segundo fio condutor que foi responsável pelo meu perfil de docente de antropologia, no formato de uma Introdução ao estudo do Homem em duas universidades, nas pesquisas a que me dediquei paralelamente e nas diversas obras que publiquei, nos artigos publicados em revistas nacionais e internacionais, além de contribuições em simpósios e congressos dentro e fora do país, aparece uma outra peculiaridade. Essas publicações não se concentram ou limitam à temática centrada numa especialidade rigorosamente delimitada ou centrada. São de natureza histórica, antropológica, sociológica, científica, filosófica, inclusive, teológica. A explicação imediata encontra-se na minha formação interdisciplinar já no nível médio, no “ginásio” e, de modo especial no nível superior, nos bacharelados mais acima mencionados, em Línguas e Literatura Clássicas, em Filosofia, em História Natural e Geologia, licenciatura em Teologia e livre docência em Antropologia e doutorado em Filosofia. Tentei mergulhar o mais profundamente em cada um desses vastos e abrangentes campos do conhecimento.

Da Enxada à Cátedra [ 97 ]

A última viagem – 2011: Inglaterra Verona.

Em fins de setembro e começos de outubro a Inez e eu programamos mais uma viagem para a Inglaterra para visitar nosso filho Paulo e, depois, uma esticada até Verona no norte da Itália. Entre a última visita e esta, o Paulo comprara um apartamento em Wantage perto de Oxford. Morava sozinho pois, ele a Rina tinham decidido cada um seguir seu caminho. O roteiro foi o de sempre: Porto Alegre – São Paulo – Londres e, de lá, a Wantage de carro cerca de 70 milhas pela auto estrada M4 ao norte de Londres. Trata-se de uma cidadezinha simpática com 13.000 habitantes, um belo parque na periferia, um majestoso carvalho na praça. Como para nossa demora com o Paulo resumia-se a pouco mais de meia semana não programamos nenhuma circulada para mais longe. Inclusive a visita ao sítio arqueológico Stone Henge foi suspenso para termos tempo e tranquilidade para conversar com o Paulo e ajudar a acomodar os pertences no apartamento no quarto andar de um prédio recém concluído na rua St. Mitchel. Percorremos a pé os pontos de referência da cidade, entre eles, o supermercado, o belo parque na periferia da cidade e poucas quadras distante do apartamento do Paulo. Como a Inez trabalhava como voluntária na Cruz Vermelha de São Leopoldo, visitamos a agência da Cruz Vermelha da cidade. Fomos convidados também para uma janta no apartamento da mãe da Rina numa cidade próxima a Londres. Mas o programa mais marcante veio a ser a assistência a uma exibição numa igreja do coral do qual a Rina era integrante oferecendo uma magnífica interpretação do “Messias” de Händel.

No domingo pela meia tarde embarcamos num voo regional até o aeroporto de Villa Franca de Verona. Com uma tarde sem nuvens foi possível uma magnífica visão do conjunto dos Alpes. Um taxi nos levou até o hotel Piccoli perto da estação central dos trens em Verona. Verona fica na região do Vêneto. No dia seguinte resolvemos dar uma caminhada, passando pela ponte do rio Adige que passa pela cidade. O objetivo foi conhecer o centro da cidade e a emblemática arena construída pelos romanos no século I como local de espetáculos tão a seu gosto. Hoje serve como espaço para apresentações artísticas, óperas, teatros, corais, esportes e outros eventos mais.

No dia seguinte uma sobrinha da Inez morando em Vila Franca nos buscou para passar conosco e visitar outros pontos turísticos, incluindo evidentemente a casa onde viveu “Julieta” personagem central da tragédia escrita por Shakespeare no começo de sua carreira conhecida como “Romeu e Julieta”. Conta a história do romance e morte trágica de dois adolescentes cuja famílias viviam em guerra mas, depois da morte de Romeu e Julieta reconciliaram-se e passaram a cultivar uma sincera amizade. No fim daquela tarde a sobrinha e o marido nos levaram até sua residência em Villa Franca onde jantamos para depois nos levarem de volta ao hotel em Verona. No dia seguinte embarcamos no trem até a estação central de Milão e de lá de ônibus até o aeroporto para embarcar num MD11 da TAM. Depois de um voo tranquilo pousamos em Guarulhos para, na mesma noite, seguir até Porto Alegre onde nos esperava a Ingrid e o Ernani para nos levar para casa em São Leopoldo. Foi a última viagem na companhia inesquecível da Inez. Constava nos nossos planos viajar mais uma vez até a Inglaterra e Portugal. Infelizmente esse plano foi frustrado pelo fatídico diagnóstico da mal de Alzheimer em começos de 2012. Confesso que depois dos 5 anos que se seguiram terminando com o falecimento da fiel parceira de vida durante 45 anos, perdi qualquer motivação para novas viagens tanto regionais no Brasil quanto internacionais.

Da Enxada à Cátedra [ 96 ]

Em 2009: Inglaterra-Munique-Bolsano.

Em fins de setembro de 2009 a Inez e eu decidimos fazer mais uma visita ao nosso filho Paulo na Inglaterra. A viagem foi a convencional descrita nas viagens anteriores: Porto Alegre, São Paulo, Londres. Ficamos hospedados com o Paulo e sua companheira Rina em Ambrosden como na viagem anterior. Nos três ou quatro dias que passamos com eles as programações se resumiram em conhecer alguns palácios típicos construídos como residências de campo de magnatas ingleses. Um dia foi dedicado a conhecer Oxford onde almoçamos no antigo castelo, o museu no centro da cidade. Num daqueles ônibus de dois andares com o de cima sem cobertura percorremos os pontos de referência na cidade com destaque para o complexo da famosa universidade. É óbvio que em menos de um dia só foi possível formar uma ideia muito superficial da cidade e arredores. Dedicamos o último para conhecer dois enormes centros de compras situados fora de centros urbanos, floriculturas, uma cooperativa de hortigranjeiros oferecendo seus produtos para a venda. Encerrada a visita ao Paulo partimos num voo regional a Munique e de lá de trem a Bolsano (Bozen) passando por Bressanone (Brixen) no norte da Itália. Essa região assinalada nos mapas como Trentino – Alto Adige (Tirol do Sul) pertencia ao Império Austro-Húngaro até o final da primeira guerra mundial, como já lembrei mais acima e nos tratados de paz e acerto de fronteiras celebrados pelos vencedores passou, como que um troféu de guerra, para a jurisdição da Itália. O Alto Adige (Tirol do Sul) com Bolzano como centro urbano mais importante e capital daquela província também é conhecido como a província das “duas línguas”, alemão e italiano. As placas de sinalização vem com inscrição dupla: “Bressanone-Brixen”, “Bolsano-Bozen”, “Morano-Moran” e outras mais. Pois, foi em Bolsano-Brixen que nos hospedamos no hotel “Magdalenerhof” um pouco para fora do perímetro da cidade na subida para as montanhas. O lugar não podia ter sido mais próprio para as nossas caminhadas naquela semana que nos demoramos naquela região paradisíaca do emblemático Tirol do Sul. Na frente do nosso quarto de hotel as parreiras desciam a encosta até se confundirem com os quintais das casas da periferia da cidade. No lado oposto subiam a encosta das montanhas até onde a topografia o permitia. As fachadas das moradias dos cultivadores de uvas voltadas para o vale conferiam um toque de beleza singular aquela paisagem humanizada dedicada a cultura de vinhedos desde o tempo dos romanos. Numa plataforma de bom tamanho na meia encosta sobressaía aos parreirais uma daquelas igrejinhas com uma torre lateral, características do Alto Adige ou Tirol do Sul, rodeada por uma dúzia de moradias e instalações atendendo os serviços básicos de uma pequena comunidade de vinhateiros. Na primeira manhã subimos caminhando pela estrada usada por eles em meio aos parreirais em fim de colheita saturando a atmosfera com o saboroso perfume das uvas maduras. Seguidas vezes cruzamos por tratores puxando carretões carregados de uvas descendo até a periferia da cidade onde se encontravam as instalações de processamento. Um pouco mais adiante a estrada acompanhava a encosta íngreme da montanha. À direita predominava a vegetação nativa destacando-se o carvalho anão com os galhos retorcidos e carregados de bolotas. À esquerda parreiras seculares avançavam até a beira da estrada. Uma surpresa nos esperava numa curva onde terminava o asfalto substituído por uma trilha de chão batido cruzando pela vegetação nativa contornando a encosta. Um hotel projetado para receber de preferência executivos aninhado na encosta da montanha e uma visão privilegiada sobre a cidade e na fachada o letreiro “Hotel Eberle”. Foi inevitável um salto da imaginação de 11000 quilômetros até Caxias do Sul e sua indústria metalúrgica “Eberle”. Essa relação faz todo sentido pois, os Eberle de Caxias do Sul, como não poucos outros, emigraram do Alto Adige para o Brasil. Continuando cerca 200 metros pela trilha onde ela dobra para a esquerda e desce até a cidade, encontramos um desses cruzeiros tão emblemáticos da região, com seu telhadinho protegendo o Cristo crucificado esculpido em madeira. Esses cruzeiros são, por assim dizer, a marca registrada da paisagem do Alto Adige-Tirol do Sul. Originaram também um personagem que faz parte da história daquele cenário, artista perito em esculpir o “corpus” do Cristo crucificado, conhecido com “Herrgottschnizler”, mal traduzido o “escultor de Deus”.

Algo que merece destaque vem a ser o fato de o vitivinicultores e produtores e outras frutas nos espaços propícios mais altos, estarem organizados em forma de cooperativas de produção e processamento das colheitas com o suporte de cooperativas de crédito Raifeissen, o mesmo modelo, portanto, que deu e continua dando fôlego e segurança financeira aos colonizadores do sul do Brasil, vindos da Itália, Alemanha, Suíça, Áustria, Polônia, do Volga e outros lugares da Europa Central e do Norte. Os “Banca Raifeissen” fazem parte obrigatória dos serviços disponíveis para o público em qualquer comunidade maior nessa região. Não por nada encontramos em Bolsano uma população aparentemente tranquila, trabalhadora, solidária oferecendo um cenário geográfico humano que faz com que o forasteiro se sinta como que em casa. Cada vez que recordo aquelas caminhadas pelos caminhos e trilhas daquelas encostas entre parreirais milenares e vegetação nativa, na melhor das companhias que poderia desejar, acomete-me uma sensação profunda nostalgia de um paraíso perdido mas não esquecido. Já fazem sete anos que a Inez passou para o outro lado do caminho no entender de Santo Agostino. Não passa dia em que não repasso e, em muitos casos, nos mínimos detalhes os inesquecíveis 43 anos que juntos tropeçamos, levamos tombos, mas sempre nos levantamos para seguir a jornada em busca de Deus! Ao mesmo tempo vem-me à memória o testemunho deixado por São Bonifácio referindo-se a abadessa Eangyth, sua fiel incentivadora na cristianização dos povos germânicos: “Solatium peregrinationis meae – Consolo da minha peregrinação!”. A Inez foi o consolo e a fiadora da minha peregrinação! “Requiescat in pace – Descance na paz do Senhor!”

Aqui cabe um inciso que marcaria como ferro em brasa os sete anos que se seguiram. Num daqueles dias, depois de caminharmos a manhã inteira pelas trilhas da encosta das montanhas, a Inez acertou para o começo da tarde o penteado num salão de beleza perto do hotel. Enquanto ela foi cuidar do cabelo depois do almoço eu optei por uma soneca. Não me preocupei pela demora de ela voltar e dediquei o tempo esperando no quarto lendo um livro. Como ela gostava de ver coisas novas e falava perfeitamente o italiano não me preocupei. Quando voltou depois de uma hora ou pouco mais ela me contou que ao voltar do salão de beleza ela se sentiu perdida e não se lembrou do caminho de volta. Foi quando pediu informações na entrada de um estabelecimento. A atendente da portaria informou-a que se encontrava na entrada do hotel “Magdalenerhof” onde estava hospedada. Neste momento ela reconheceu o ambiente que lhe era familiar inclusive um enorme pastor alemão deitado na subida da escada saudando-a com um abano do rabo. Tudo esclarecido foi para o quarto onde eu esperava por ela. Contou-me o incidente e não sei como não me flagrei de que se tratava de algo estranho. Durante o resto da viagem não notei mais em nenhuma ocasião nela um lapso de memória como aquele. Dois anos mais tarde, porém, eles começaram a tornar mais frequentes. Foi então em meados de 2011 que os exames pedidos pela neurologista confirmaram um estágio bem visível do mal de Alzheimer. Não vou descrever o que significou para ela, para mim, minha filha e genro evolução do mal se agravando progressivamente. Para quem já se envolveu de alguma forma com os efeitos sobre o físico e a psique da pessoa vítima desse mal traiçoeiro do qual não se conhece devidamente nem a causa, nem um tratamento eficaz, muito menos uma cura, toda e qualquer descrição só consegue dar uma pálida ideia. Apenas registro que de dezembro de 2015 e 12 de abril de 2017, quando veio a falecer, a Inez ficou presa ao leito, sem reconhecer mais ninguém.

No dia seguinte desse episódio e sem noção do que de fato havia acontecido, melhor, que estava acontecendo, programamos uma subida de teleférico até o alto das montanhas na localidade conhecida na nomenclatura original alemã como “Oberbozen”, “Soprabolsano” no italiano, vem a ser uma dessas cidadezinhas típicas acomodadas nos prados emoldurados pelas dolomitas com os cumes cobertos de neve no nordeste da Itália. Foi neste cenário que se consolidou uma paisagem humanizada de uma rara beleza e de uma riqueza cultural difícil de encontrar em outra parte. A história conhecida dessa região, tanto o Tirol do Norte quanto o Tirol do Sul, o primeiro sob a jurisdição da Áustria e o segundo da Itália na verdade formando uma unidade geográfica e histórico cultural, recua até o tempo dos romanos e a migração dos Cimbros e Teutões no século II AC. A consolidação da ocupação do Tirol aconteceu definitivamente nos moldes em que continua existindo, com a fixação dos Alamanos no complexo das montanhas dos Alpes, durante a migração dos povos entre os séculos IV e VIII DC. A opção em subir de teleférico até “Oberbozen” não podia ser mais acertada. Do alto, tanto na subida quanto na descida podia-se desfrutar de uma visão ampla sobre a paisagem com a floresta nas encostas mais íngremes e as pastagens, pomares e vinhedos nas áreas mais planas. Saindo da estação do teleférico defrontamo-nos com uma cidadezinha de bom tamanho acomodada na plataforma entre as dolomitas, servida com uma infraestrutura completa: restaurante, comércio, cooperativa de crédito Raifeisen, a indispensável igreja com sua torre inconfundível em todo o Tirol, salão de festas. Entrando na igreja um detalhe me chamou a atenção: um belo quadro emoldurando o busto do Pe. Rupert Meier, herói da primeira guerra mundial como capelão na frente de combate quando perdeu uma perna e combativo opositor ao nacional socialismo, comandando os homens da Congregação Mariana em Munique onde sua sepultura pode ser visitada no Bürgersaal. Lembro maiores detalhes sobre esse autêntico santo moderno, nos registros que anotei mais acima na viagem que fizemos a Munique. O proprietário do restaurante vinha a ser um “Fink”, sobrenome comum entre os descendentes de alemães que emigraram do Tirol assim como “Eberle” de Caxias do Sul.

Aqui vem a ser o lugar e a ocasião de lembrar o nome e os feitos de dois personagens, ambos padres jesuítas, nascidos no Tirol do Sul, um em Bressanone-Brixen e o outro em Morano-Moran. Comecemos pelo primeiro. Falamos do missionário jesuíta Anton Clemens Sepp von und zu Rechegg. Nasceu em Kaltem an der Weinstrasse – Brixen-Bressanone em 1655 e faleceu na província de Missiones na Aargentina em 1733. Foi um homem de uma versatilidade impressionante. Formado em música pelo conservatório de Londres, arquiteto, escultor, urbanista, administrador de várias reduções e fundador da de São João batista. Trabalhou como missionário nas sete Missões entre 1691 e 1733, data do seu falecimento. Deixou um livro intitulado “Viagem às Missões Jesuíticas e Trabalhos Apostólicos”, além de cartas e outros documentos descrevendo os costumes e hábitos dos indígenas. Empenhou-se na educação e prática da música nas reduções. Foi arquiteto, escultor, administrador de várias reduções, tudo somado a um feito histórico pioneiro. Instalou e fez funcionar o primeiro alto-forno de fundição de ferro do Brasil. Os vestígios de sua passagem e influência podem ser encontrados nas Missões do noroeste do Rio Grande do Sul e imortalizados como patrimônio cultural da humanidade. O Pe. Arnaldo Bruxel microfilmou as cartas e demais documentos deixados pelo Pe. Sepp. Encontram-se sob a guarda do Instituto Anchietano de Pesquisas na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Por suas muitas realizações em favor dos seus amados indígenas ficou conhecido entre eles, de modo especial entre as crianças, com o pseudônimo carinhoso de “Pay Antô”.

O segundo filho ilustre do Tirol do Sul, o jesuíta Erich Wassmann, nasceu em Moran-Morano. Alinha-se entre os cientistas mais conceituados do final do século XIX e começos do Século XX. Conhecido também como o padre das formigas ainda hoje figura entre maiores pesquisadores e estudiosos das colônias de formigas e térmites e sua relação simbiótica com fungos. Condensou suas conclusões na obra clássica “Theoretische Biolgie” e uma série de artigos publicados no periódico Stimmen der Zeit na casa dos escritores dos jesuítas em Maria Laach na Alemanha. Em seus escritos defende o recurso aos princípios do evolucionismo de Darwin para explicar as descobertas científicas que observou no funcionamento das colônias de formigas e suas relações simbióticas com fungos, somados aos resultados das pesquisas científicas em outras especialidades. Teve o cuidado de deixar claro que não punha em dúvida princípios doutrinários pétreos envolvendo principalmente a criação divina em questões definidas pelo magistério oficial da Igreja. Com isso atraiu sobre si, de um lado, a ira dos evolucionistas materialistas como Ernst Haeckel, Julião Huxley apelidado de o “buldogue” de Darwin e outros mais. De outro lado despertou a suspeita dos cães de guarda da ortodoxia católica que rejeitavam toda e qualquer diálogo frutífero entre a ciência e a doutrina da Igreja que declarava o modernismo como herético. A prova a que estremos chegara a condenação do modernismo encontra-se numa proposta do Concílio Vaticano I, felizmente abortada pela guerra Franco-Prusssiana, declarando o Darwinismo como heresia. Qualquer pessoa razoavelmente informada sobre essa situação de beligerância entre a Ciência e a posição oficial da Igreja Católica, sabe da rejeição declarada do modernismo pelo papa Pio X nos documentos pontifícios, com destaque para a encíclica “Pascendi Dominici Gregis”. Sua posição foi tão radical que obrigava os sacerdotes a fazerem obrigatoriamente o “juramento anti modernista” como condição para a ordenação sacerdotal. Pressionado por esse cenário Wassman desistiu de publicar a terceira edição do livro “Theoretisch Biologie”. De outra parte enfrentou o materialismo numa série de embates diretos com Haeckel ocorridos em Berlim na primeira década do século XX.

Depois de degustar aquele ambiente paradisíaco descemos até a estação do teleférico na entrada de Bolsano e de lá até o hotel, reunir os nossos pertences e na manhã seguinte embarcar no trem e via Trento, Verona, Bergamo até a estação central Milão e de lá de ônibus até o aeroporto. A viagem até São Paulo, Porto Alegre e São Leopoldo foi tranquila.

Da Enxada à Cátedra [ 95 ]

2007 Inglaterra – Berlim – Praga - Bérgamo

Depois dessa, seguiram mais três viagens à Europa, sempre em companhia da Inez. Todas as três foram basicamente motivadas para visitar nossos filho Paulo morando e trabalhando na Inglaterra. A primeira viagem aconteceu em setembro e começos de outubro de 2008. A viagem de ida de Porto Alegre até o aeroporto e Heatrhrow em Londres foi bem tranquila. Lá nos esperava o Paulo e sua companheira Rina. Do aeroporto até Ambrosden, em torno de 120 quilômetros ao norte de Londres, viajamos de carro. Ambrosden vem a ser uma cidadezinha típica do interior da Inglaterra no condado de Oxfort e 13 milhas distante daquela cidade. Como iríamos passar somente alguns dias na Inglaterra conhecemos as redondezas e passamos um dia no parque e palácio de Blenheim. Nesse palácio nasceu e foi sepultado Winston Churchill (1875-1965). Não vou alongar-me com comentários sobre esse personagem e sua importância como primeiro ministro da Inglaterra durante a segunda guerra mundial e novamente ocupando o mesmo cargo na primeira metade da década de 1950 pois, sua influência mundial nos acontecimentos, antes, durante e depois da guerra foram e são amplamente comentados pelos historiadores. De qualquer maneira foi um dia rico em vivências caminhando pelo bem cuidado parque, seus jardins, gramados, o roseiral, o lago e o emblemático carvalho multissecular como que fazendo-se de sentinela daquele magnífico palácio carregado de história devido a importância por abrigar o berço e agora a sepultura de Churchill. Guardo entre minhas muitas fotos entre outras, quatro que mechem fundo nas minhas emoções quando de tempos em tempos repasso os álbuns das fotos das viagens. A primeira o Paulo e eu em frente ao carvalho, a segunda a Inez e eu também junto ao carvalho e uma terceira, a Inez no meio do roseiral apreciando o perfume das rosas e a quarta, a Inez e eu sentados num banco no ancoradouro do lago, marcando um dos momentos mais significativos para nossa vida a dois.
Passados os dias reservados para a visita ao nosso filho Paulo em Ambrosden, embarcamos num voo regional para Berlim. Um taxi nos levou do aeroporto até o hotel no Alexanderplatz.

Considerada a maior praça de Berlim e centro de referência da cidade desde a idade média, palco de paradas militares e outros atos públicos. Localiza-se no setor soviético na partilha da cidade depois da segunda guerra mundial e capital da DDR até a unificação da Alemanha após a queda do “muro” em 1989. Qualquer pessoa minimamente informada sabe da tragédia que se abateu sobre Berlim durante a segunda guerra. Ondas e mais ondas de bombardeiros jogaram milhares de toneladas de bombas sobre a cidade reduzindo-a em grande parte a escombros. As tropas soviéticas encarregaram-se de completar a tragédia que se abateu sobre a população civil. Idosos, mulheres de todas as idades além de milhares de crianças, vagavam atônitos entre os escombros, sem proteção, sem abrigo, sem alimentos e ninguém a quem recorrer e os soldados soviéticos dando vasão a tudo de que o ser humano guarda de diabólico e explode sem dó nem piedade em tais situações. Assassinatos de civis, pilhagens, estupros e desmandos dos mais cruéis transformaram a majestosa Berlim num autêntico inferno. Acontece que a história oficial costuma ser contada pelos vencedores e, por isso mesmo, os desmandos por eles praticados costumam ocupar um lugar bem à margem da narrativa, talvez apenas perceptível nas entrelinhas ou notas de pé de página. Acontece que relatos que desnudam a realidade de uma perspectiva mais objetiva, embora raras, podem ser encontradas escondidas e ignoradas em bibliotecas pelo mundo afora pois conta uma história que não interessa à versão politicamente correta. Eu próprio tive acesso a dois livros e os li da primeira à última página lançando alguma luz sobre a tragédia humana vivida não só pela população indefesa de Berlim e Dresden como também de centenas de outras cidades maiores e milhares de aldeias e cidades menores. Um desses dois livros levava o título, “Der Tod Dresdens” – “Morte de Dresden” e o outro “Heldendum Deutscher Farauen” – “O Heroismo de Mulheres Alemãs”. “A morte de Dresden” descreve a tragédia que se abateu sobre aquela cidade nos dias 13, 14, e 15 de fevereiro de 1945. Em levas sucessivas 1300 bombardeiros despejaram sobre a cidade cerca de 3900 toneladas de bombas, uma boa parte delas incendiárias que reduziram a escombros a “Florença do Elba”, como a cidade costumava ser apelidada pela sua arquitetura, suas bibliotecas, suas pinacotecas, suas galerias de arte. Com pouca ou nenhuma importância estratégica foi vítima da tática genocida de uma guerra de terra arrasada para quebrar o ânimo da população civil já no final do conflito. Os resultados desses dias de apocalipse registraram, além dos danos materiais a morte de 250 000 a 500 000 mortos, idosos, mulheres e crianças. Pilhas de corpos amontoavam-se nas praças e avenidas a espera de sepultamento ou cremação. Nunca estive em Dresden. Observei-a de longe, hoje inteiramente reconstruída, ao viajarmos de trem de Berlim a Praga na semana seguinte. Berlim passou pela mesma tragédia, não por bombardeios aéreos, mas pela fúria, o ódio e vingança quando da conquista por terra pelas tropas soviéticas. Esses autênticos genocídios costumam ser calados pelos historiadores e ou escritores que se inspiraram ou ainda inspiram naqueles acontecimentos. Esse cenário, essa atmosfera de apocalipse envolvendo Berlim, Dresden e muitas outras cidades pelo fim da guerra perto de 80 anos passados, ainda paira sobre elas para as pessoas que como eu acompanharam de alguma forma esse período obscuro da história. A reconstrução em grandes linhas recuperando o original de antes da guerra apagou quase por completo os vestígios do terror da guerra. A avenida “Under den Linden”, o portão de “Brandenburgo”, os edifícios históricos, a catedral e outros mais aguardam o visitante na sua beleza e encanto de antes do conflito. Cá e lá montes maiores ou menores de escombros ainda podem ser vistos em Berlim Oriental sob a tutela da DDR até 1989.

Terminada a guerra os novos líderes da Alemanha subsidiados pelo “Plano Marshal” não perderam tempo para reconstruir o País. Foi neste cenário que que se fez presente a figura da “Trümmerfrau” – “A Mulher dos Escombros”. Estima-se que só em Berlim 60.000 delas foram responsáveis pela remoção dos tijolos, madeiras e demais restos de construção que cobriam as ruas, avenidas, e praças. Com carrinhos de mão, carrocinhas improvisadas e com as mãos desprotegidas separavam os tijolos, os limpavam e empilhavam para serem reaproveitados na reconstrução. Amontoavam os entulhos inaproveitáveis em lugares estratégicos livrando os espaços para os profissionais programarem e executarem a espantosa obra da reconstrução das cidades pequenas e grandes arrasadas pela estupidez e a irracionalidade da guerra. Dezenas de milhares de viúvas, mães, noivas e moças solteiras que choravam os maridos, os filhos, os noivos e os irmãos, tombados nas frentes de combate, desaparecidos ou confinados em campos de prisioneiros e/ou de trabalhos forçados, reuniram-se como que num exército de assalto, que tornou, em grande parte, possível o duro remeço. As atuais gerações da Alemanha fariam bem em construir um monumento em homenagem às suas avós e bisavós que sozinhas com as mãos esfoladas, os pés maltratados, com o coração sangrando, mas indômitas como suas ancestrais formaram as brigadas das “Trümmerfrauen – das “Mulheres dos Escombros”.

Após três dias em Berlim embarcamos no trem rumo a Praga. Só foi possível enxergar de longe a cidade de Dresden, passamos também por “Bad Schandau” onde tínhamos passado um dia na viagem anterior à capital Tcheca. Demoramo-nos dois dias em Praga para admirar mais uma vez a sua imponência e seu significado histórico para a Europa Central e do Norte. Remeto detalhes registrados mais acima ao descrever a esse magnífico monumento que felizmente foi pouco desfigurado tanto pela ocupação do exército alemão primeiro e, terminada a guerra pelo “Pacto de Varsóvia”. Infelizmente a Inez não conseguiu comprar um pingente de âmbar pois, a loja tinha fechado e encerrado a venda daquele tipo de joias.

Depois de dois dias em Praga embarcamos no trem até Munique onde nos demoramos um dia. Demos uma circulada pela Oktober Fest para novamente embarcar no trem e chegar na entrada da noite em Bréscia. Não havendo como seguir de trem até Bérgamo dividimos o aluguel de um taxi com um outro passageiro e pelas nove horas da noite nos apresentamos no hotel previamente reservado, não no centro da cidade, mas num bairro sete quilômetros afastado. Não vou repetir o que já registrei sobre Bergamo na viagem de 2001. Aproveitamos um dia inteiro para uma viagem de ônibus até o famoso lago de Como. O trajeto passa por “Sotto il Monte”, cidade natal do papa João XXIII em direção aos Alpes. Dispúnhamos de poucas horas para apreciar aquela paisagem pois, o ônibus voltaria a Bérgamo às 15h. De qualquer maneira deu tempo para apreciar aquele espetáculo da natureza que começou a ser moldado há mais 65 milhões de anos quando a placa geológica móvel da África colidiu com a euroasiática fixa como já lembrei ao descrever a viagem de trem de Koblenz a Milão em 2001. Automaticamente recuei mais de meio milhão de anos e na imaginação desfilaram as quatro eras glaciais, no topo das quais a temperatura média situava-se entre 8 a 10 graus abaixo da atual. O resultado foi o acúmulo de gigantescas massas de neve e gelo como que sepultando os Alpes com as demais cadeias de montanhas situadas em regiões de clima temperado e frio. Enormes caudais formados por geleiras de centenas de metros de espessura desciam lentamente pelas encostas arrancando e carregando tudo que vinha pela frente. Montanhas inteiras de granito como o famoso “half Dom” no parque Yosemite na Sierra Nevada na Califórnia foram partidas ao meio e os escolhos em forma de morainas transportados montanha abaixo para degelarem na entrada das planícies. Na sua passagem moldaram os característicos vales em forma “U”, percorridos por arroios ou rios ou então formando lagos como o de Como, Lugano, de Garda e outros.

Pela meia tarde retornamos de ônibus a Bérgamo e reservamos para o dia seguinte a passagem de trem para Milão. De volta ao hotel deixamos prontos os nossos pertences. Num voo tranquilo a São Paulo e de lá até Porto Alegre, onde nos esperava a Ingrid e o Ernani que nos deixaram em casa no bairro Campestre em São Leopoldo.

Da Enxada à Cátedra [ 94 ]

2006 – Milão – Trento – Stuttgard

Essa viagem veio a ser de turismo sem nenhum compromisso acadêmico acompanhado também pela Inez que cultivava um enorme prazer em viajar. Mais do que eu, mas sinto ainda hoje, depois de seis anos da sua partida, um enorme prazer por lhe ter proporcionado essa satisfação. O roteiro começou em Porto Alegre para em São Paulo voarmos até Milão. Do aeroporto um “ônibus nos deixou na estação do trem em Milão. Embarcamos no trem regional e, passando por Bérgamo, para na estação central de Verona baldearmos e seguirmos até Trento. Tínhamos reservado por uma semana uma vaga no hotel Dolomiti em Vattaro. Como não conhecíamos nada do Trentino, achando que Vattaro ficava nas redondezas de Trento, tivemos uma surpresa ao pedir que um taxista nos levasse para o hotel. Ele nos olhou quase como que espanto e disse: “Vattaro fica lá nas montanhas”. Não tínhamos outra alternativa senão pedir que nos levasse para lá, imaginando que a viagem importaria num pequena fortuna. Antes de perguntar pelo preço da corrida ele propôs levar-nos, se não me engano, por 35 euros. Fiquei agradavelmente surpreso pois, calculara que a corrida custaria em torno de 70 a 80 euros. Embarcamos e na entrada da noite depois de subir as montanhas, nos apresentamos ao escurecer no hotel Dolomitti. O quarto ficava no último andar com vistas para a encosta das montanhas. A primeira surpresa foi o hotel “Alpenrose” no outro lado da rua principal e, na encosta e mais adiante, a floresta de pinheiros escalando a muralha das dolomitas. O nome daquele hotel e as montanhas como fundo fizeram-me viajar, de um lado, pela história recente da região e do outro pela história contada em milhões de anos da gênese geológica daquele cenário.

As dolomitas, como já lembramos mais acima formam o segmento oriental do complexo da cordilheira dos Alpes no norte da Itália. Predominam nas províncias de Belluno, Bolzano, Trento, Udine e Pordemone. Seu ponto mais alto encontra-se em Belluno no Momolade com 3.343 metros de altitude. Há 250 milhões de anos essas montanhas estavam submersas no mar. Com a retirada deste terminaram por assumir a geomorfologia que hoje as caracteriza. Basicamente trata-se de rochas calcárias compostas numa dosagem equilibrada de carbonato de magnésio e carbonato de cálcio. Os solos que resultaram da decomposição dessas rochas pela ação do tempo são propícios para o cultivo de vinhedos, maçãs, pêssegos, peras, ameixas e outras. Vattaro localiza-se a cerca de 450 metros de altitude próximo a Calurânica no lago de Caldona e Vígolo.

A cidade como tal não oferece maiores atrações. Mas as trilhas em meio às florestas que sobem até o sopé das montanhas vem a ser o cenário ideal para quem aprecia caminhar sem compromisso nem de hora, nem de distância, como era o nosso caso. A Inez vinha a ser a companheira perfeita para degustar as surpresas que nos aguardavam em cada curva daquelas trilhas. Na meia encosta um rebanho de cabras pastava num pasto cercado por uma tela de arame. Ao nos perceberem vinham correndo pedido um carinho encostando o nariz ou a cabeça nas malhas da cerca. Um cercado do lado abrigava uma dezenas de búfalos americanos. Ignorando a nossa presença continuavam pastando e ruminando sem nos dar a mínima importância. A brisa vinda da penumbra das florestas oxigenava os pulmões fazendo com que não se sentisse cansaço e de troco revelavam que a natureza não vem a ser apenas um conjunto de milhares e milhões de árvores, arbustos, insetos, pássaros e inúmeras outras criaturas e a sinfonia dos sons, mas fala uma linguagem que revela muitos significados que não estão escritos em livros.

Para o segundo dia o dono do hotel levou-nos até Vigolo cerca de 4 quatro quilômetros de Vattaro. O motivo principal para conhecer essa cidadezinha, foi o fato de ser a cidade natal da santa madre Paulina que emigrou para São Paulo fixando-se com outras religiosas no bairro Ipiranga onde fundaram a obra “Sagrada Família”, destinada a abrigar antigos escravos depois da abolição. O nome de batismo da santa foi Amabile Lúcia Visintainer, nascida em 1865 em Vígolo e falecida em 1942 em São Paulo e canonizada em 2002 pelo papa João Paulo II. Vale acrescentar que ela nasceu na região hoje conhecida como Alto Adige antigo Tirol do Sul incorporado à Itália e 1920, depois da derrota e desmoronamento do Império Áustro Húngaro. Fizemos uma visita rápida à casa onde nasceu a santa para depois subir a encosta da montanha e almoçar num restaurante na beira de uma estrada de chão que ligava outras localidades mais para o norte. Pela meia tarde voltamos a pé até o hotel em Vattaro

No terceiro dia o dono do hotel nos levou até uma trilha de mato que ligava Vattaro a Caluranica al Lago, junto ao lago Caldona ou Caldonazzo. Não havia grande novidade a ser visto além do lago. Depois de um almoço na beira do lago, descansamos um bom tempo num banco de frente para o lago para depois voltarmos a pé a Vattaro, não pela trilha no mato mas por um estrada de chão que beirava pomares de maçãs maduras. Apesar de as pencas quase tocarem o barranco da estrada nenhum transeunte as colhia. Admirei o respeito daquela população pela propriedade alheia e, automaticamente me imaginei algo semelhante no Brasil. Pelo fim da tarde voltamos por um atalho até o hotel. Num arroio de bom porte que cruzava a trilha do atalho, podiam-se observar as trutas nadando na água cristalina.

Para o quarto dia programamos, por sugestão do dono do hotel uma viagem até Veneza. Ele nos levou até a estação do trem regional perto do lago. Não me lembro ao certo quanto tempo levamos. Entramos na estação da cidade pela meia manhã e começamos a circular a pé pela cidade conhecida por qualquer pessoa razoavelmente informada como a cidade dos canais. A história dessa cidade começou com o povoamento das 117 pequenas ilhas pela movimentação da migração dos povos germânicos vindos do norte e do centro da Europa. Quando os ostrogodos e lombardos expulsaram os primitivos habitantes do Vêneto estes refugiaram-se nas ilhas da região pantanosa da foz do Pó. Como pescadores e extratores de sal moravam em palafitas até que em 421 d.C. os romanos fundaram a cidade construindo-a sobre as ilhas e pântanos da foz do Pó. Em 476 d. C. Odoarco nascido na Panônia na Áustria mas servindo no exército romano destronou Rómulo Augusto, selando o fim do império romano do ocidente. Não é aqui o lugar para detalharmos em minúcias essa história pois, levaria muito longe e nos desviaria do nosso objetivo. A pergunta que merece ser lembrada refere-se às técnicas utilizadas para construir a cidade com sua imponente arquitetura naquelas ilhotas e na lama que as rodeava. Para tanto os construtores foram buscar nas florestas próximas troncos de árvore de 2 a 8 metros de comprimento. Numa extremidade as apontavam como um lápis e as mergulhavam em pé no lodo. Sobre esse fundamento foram construídas as edificações. Mergulhadas na água salgada e na lama composta de areia e argila as toras não se decompuseram. Pelo contrário endureceram e por assim dizer petrificaram tornando-as sempre mais sólidas com o correr dos séculos. O estilo das construções, palácios, residenciais, igrejas com destaque para o complexo que circunda a praça de São Marcos e seu ícone a basílica de São Marcos, vem a ser rico e muito variado, com predominância do gótico. Os canais em vez de ruas e avenidas com destaque para o “grande canal”, as gôndolas transportando as pessoas, manobradas por peritos, os “gondoleiros” que gozam de um status respeitado pela população residente e uma curiosidade a mais para os turistas. Nas poucas horas que percorremos a cidade deu apenas para formar uma ideia muito superficial de suas belezas com destaque para a praça de São Marcus. Pela meia tarde embarcamos no trem de volta para Vattaro. Chegamos ao anoitecer na estação perto do lago Caldona. Como não localizamos nenhum taxi que nos levasse ao hotel em Vattaro, apelamos por telefone para o dono do hotel que sem demora nos atendeu e nos veio buscar. No intervalo da espera a Inez ficou praticando seu italiano com o casal que nos emprestou o telefone numa residência próxima, enquanto eu passei o tempo descansando e refletindo sentado num banco da praça. Aquele mergulho na história de Veneza e de cobro na história de um milênio em que o norte da Itália consolidou sua fisionomia humana e geográfica de hoje, por si só, teria valido a viagem.
Dedicamos o último dia em Vattaro para descer de ônibus até Trento a fim de acertar a segunda etapa da viagem. Depois de comprar a passagem de trem por Munique a Stuttgard. Passamos o resto da manhã e metade da tarde visitando alguns pontos de importância histórica. Antes de entrar em detalhes resumo a tumultuada história dessa cidade como passagem do norte da Itália, via Passo do Brenner, para a Europa central do norte. Trentino-Alto Adige ou Trentino Südtirol vem a ser uma paisagem única formada por montanhas cobertas de neve, extensos vales, pastagens alpinas, florestas escuras, cachoeiras e lagos. Sua importância resume-se no fato de ser passagem pelos dolomitas ou Alpes orientais, do norte da Itália para a Europa. A história da região começa a esboçar-se a.C. com a civilização Rética sob o domínio dos Celtas. A ocupação romana começa pelo ano de 81 a.C. para intensificar-se ao ponto de Trento ser elevado à categoria de Município autônomo por volta de 50 a.C. Esse dado tem um significado importante porque o Império Romano na sua estrutura político administrativa contava na sua base os municípios, por essa razão é conhecido pelos historiadores como Império Municipal, no qual as diversidades étnicas, raciais e culturais costumavam ser preservadas. Mas essa é uma questão que extrapola aqui o nosso objetivo. Por volta de 15 a.C. Druso e Tibério completaram a ocupação romana transformando a região num importante centro da expansão da “romanidade” antiga. Com o colapso do Império Romano do ocidente, começou pela Idade Média adentro uma disputa movimentada pela posse do território protagonizada principalmente pelos Ostrogodos, Lombardos e Francos. A partir do século X a região passa para o domínio do Sacro Império Romano Germânico. Data desse período o nome “Trient” para designar o Trento de hoje. A partir de 1802 a região foi alvo da ocupação napoleônica do norte da Itália. Os tiroleses sob a liderança de Andreas Hofer ofereceram uma feroz resistência até serem levados de roldão pelos invasores em 1809. Pagaram um alto preço pela resistência e o patriotismo. Andreas Hofer foi capturado e executado pelos invasores do grande Corso em Mântua em 1810. Posteriormente seus restos morais foram levados para Innsbruck e sepultados na Hofkirche. Andreas Hofer permanece até o hoje como o herói mais importante do Tirol na resistência contra a invasão das tropas de Napoleão e figura importante nos embates bélicos que marcaram a história da região no começo do século XIX. A derrota de Napoleão na Rússia levou ao restabelecimento do Império Austro-Húngaro. Depois da desintegração do Império Austro-Húngaro na primeira guerra mundial, Trento com o Tirol do Sul passou para a jurisdição italiana. O resultado foi uma “italienização” do território com uma resistência muito forte da parte dos tiroleses do sul. No período do fascismo na Itália Mussolini apertou o cerco aos renitentes com uma campanha forçando a integração linguística e cultural na comunidade italiana, uma campanha muito parecida com a Campanha de Nacionalização implantada na mesma época no Brasil.

Além da sua importância geoestratégica Trento serviu também de sede do Concílio de Trento reunido para definir os rumos da Igreja Católica frente ao impacto da Reforma Luterana e Calvinista, por isso é conhecido também como Contra Reforma. Convocado pelo papa Paulo III em 1545 e concluído em 1563 por seus sucessores. Sua realização se deu no convento da cidade e foi o 19 concílio da história da Igreja. Seus objetivos principais foram a reafirmação dos dogmas, a defesa dos sacramentos, o latim como língua litúrgica, a manutenção do celibato clerical, a disciplina religiosa a correção de desvios da Igreja como a compra de indulgências além da expansão do catolicismo no mundo ocidental e, principalmente, implantação de missões entre os povos que vinham sendo descobertos e localizados pelas rotas comerciais para o oriente remoto, as ilhas do Pacífico e as três Américas. Para o sucesso da obra missionária a Igreja dispunha, por assim dizer, da “tropa de assalto” da Companhia de Jesus fundada em 1540 por Santo Inácio de Loiola e aprovada pelo papa. Como se pode deduzir o Concílio de Trento deu a partida para uma nova era para o catolicismo. Nos 300 anos que seguiram, isto é, até meados do século XIX, não poucos desvios foram-se consolidando na doutrina e disciplina eclesiásticas motivadas pela revolução do pensamento no contexto do “Modernismo”. Esses desvios acumulados até meados do século XIX levaram Pio IX a dar partida a uma nova reforma da Igreja conhecida como Restauração Católica, objetivo central para convocar o Concílio Vaticano I em 8 de dezembro de 1869 e interrompido pela guerra franco-prussiana em 18 de dezembro de 1870. Os debates tiveram como foco os problemas e desvios acumulados na Igreja pelo Racionalismo, o Liberalismo, o Materialismo, a Infalibilidde do Papa, a disciplina eclesiástica e outros desvios acumulados nos 300 anos depois do Concílio de Trento. Para as resoluções e os respectivos documentos oficiais do Concílio Vaticano I serviram de base para a definição oficial do perfil desenhado pela doutrina e a disciplina do Concílio de Trento. Essa redefinição do papel da Igreja no contexto do mundo moderno ficou conhecido como “Restauração Católica”. Não é minha intenção entrar, aqui nesse contexto, numa análise mais detalhada dessa reforma. Para quem estiver interessado no tema e sua importância para toda a Igreja, também para o Brasil, recomendo meu livro “Jesuítas no sul do Brasil – o Projeto Pastoral, Edit. Unisinos, 2013.

Acertada a passagem de trem, via Munique a Stuttgard voltamos a Vattaro para reunir nossos pertences de na manhã seguinte descer até Trento em embarcar no trem e seguir viagem. Mais acima já lembrei que o trem para a Alemanha passou por um panorama histórico de importância complementar ao do Trentino. Cruzamos a cidade de Bolzano (Botzen) e Bressanone (Brixen), região conhecida também como a região dos “dois nomes” pois, as placas de sinalização ao longo da estrada costumavam ser em alemão e italiano. A explicação resume-se no fato de que estamos no Tirol do Sul pertencente à Áustria até sua incorporação à Itália em 1919, com a derrocada do Império Áustro-Húngaro. A maioria da população continua até hoje fiel às tradições e à língua de sua origem germânica. Prometo mais detalhes sobre essa região mais abaixo ao descrever a viagem que a Inez e eu fizemos a Bozano em 2007. Depois de passar por Bressanone subimos as dolomitas até o Passo do Brenner, divisa da Itália com a Áustria para de lá descermos pela encosta dos Alpes até Innsbruck ainda na Áustria e de lá até Munique. Na estação central de Munique baldeamos para o trem até Stuttgard passando por cidades histórica como Ulm com sua catedral gótica e Regensburg. Chegamos ao destino no fim da tarde. Depois de uma viagem de metrô de poucos minutos nos apresentamos no hotel onde nos esperava o Paulo e sua companheira Rina vindos da Inglaterra para passar dois dias conosco. Voltamos depois ao centro da cidade para jantar na avenida principal.

Stuttgart vem a ser a capital do estado Baden-Würtenmberg. O nome vem do alemão antigo “Stuordgarten” e significa “haras” pois a cidade se desenvolveu a partir das cavalariças do duque Lindolfo. Não é aqui o lugar de detalhar a gênese histórica do estado de Baden-Würtemberg e sua capital Suttgart. É importante lembrar que daquele estado no sudoeste de Alemanha emigrou significativo número de imigrantes para o Brasil. Tanto assim que deram os nomes a comunidades no Rio Grande do Sul como “Badensertal” hoje distrito do município de Tupandi com o nome de “Júlio de Castilhos”, ou a cidade “Neu Würtemberg na Serra rebatizada durante a Campanha de Nacionalização para Panambi.

Stuttgart é conhecida também pelos grandes parques e áreas verdes nas suas redondezas e na própria cidade. Um dos motivos porque a cidade é conhecida pelo mundo afora vem a ser o fato de ser o berço da indústria automobilista. No final do século XIX Gottlieb Daimler e Carl Benz desenvolveram paralelamente os primeiros motores a gasolina e diesel protótipos de todos os demais que seguiram depois. A fusão posterior das duas marcas deu origem aos carros talvez mais desejados pelo mundo afora identificados com a emblemática estrela de três pontas. A primeira versão dessa estrela dada pelos criadores da marca sinalizava para o desenvolvimento de motores para serem usados em terra, mar e ar. Às três pontas foi acrescentado em 1923 o círculo e três anos depois da fusão das empresas foi acrescentada a coroa de louro. A versão definitiva hoje conhecida por qualquer pessoa pelo mundo afora, data de 1 933 e a partir daí não sofreu nenhuma alteração. Na periferia de Stuttgart a Mercedes-Benz construiu um monumental museu. Resolvemos dedicar uma manhã para visita-lo junto com o Paulo. O edifício consta de 9 andares e resume-se na história da empresa desde a sua fundação até hoje com a exibição dos modelos dos mais antigos aos mais recentes. Foi uma manhã cheia de emoções e surpresas além de uma aula não só da empresa em como do seu significado em grandes linhas dos acontecimentos históricos da Alemanha nos últimos 100 anos. Naquela tarde acompanhamos o Paulo até o aeroporto onde embarcou no voo até Londres.

A Porsche vem a ser outra empresa de fama mundial dos seus carros com sede em Stuttgard. Embora não a tenhamos visitado merece alguns comentários e curiosidades que podem interessar aos amantes de carros de alta categoria.

Para o último dia em Suttgart programamos conhecer o centro da cidade com o objetivo principal fazer uma visita ao IFA - Institut für Auslandsbeziehungen que concentra em grande parte a produção bibliográfica e documental dos alemães no estrangeiro, desde emigrantes, passando por cientistas, viajantes, aventureiros e por aí vai. Pelo final da tarde embarcamos no trem para Frankfurt e voltar para casa. E assim terminou mais uma viagem para o velho mundo na melhor companhia que poderia escolher, minha Inez a inesquecível parceira da minha vida. “Requiescat in Pace.”- “Descansa na paz do Senhor”.

Da Enxada à Cátedra [ 93 ]

2005 Roma- Praga

Essa quinta viagem, também em companhia da Inez, teve dois objetivos principais. O primeiro foi conhecer Roma e o segundo participar de mais um simpósio no Instituto Ibero americano na universidade Carolina em Praga. A viagem de Porto Alegre – São Paulo – Frankfurt – Roma foi tranquila. Em Roma o Paulo vindo da Inglaterra nos esperava no hotel. Ele ficaria somente três dias conosco. Para começar alugamos um carro e viajamos até Assis cidade que a Inez sempre mostrou vontade de conhecer, para visitar a basílica e o túmulo de São Francisco de Assis. Foi um dia cheio de emoções pelo significado histórico que São Francisco significou e continua significando para a Igreja Católica. No dia seguinte visitamos com o Paulo alguns pontos turísticos de Roma e à tarde o acompanhamos até o aeroporto onde embarcou de volta para a Inglaterra. No terceiro dia foi a vez de visitar os monumentos remanescentes do tempo do império romano com seu ícone o Coliseu. Começamos a jornada com uma breve parada na “Fontana di Trevi seguindo depois até o centro histórico da antiga Roma. Caminhando por entre os testemunhos históricos do que foi o cenário e epicentro do maior império do ocidente a partir de cerca de 800 anos a.C. a 476 d.C., quando Rômulo Augusto, o último imperador do Império Romano do Ocidente foi destronado e substituído por Odoarco chefe da tribo germânica dos Hérulos. Este, por sua vez foi derrotado por Teodrico em 488 em Aquileia, em 489 em Verona e em 490 começou o cerco a Ravena.

Envolto nas brumas dos séculos desfilaram pela minha memória a lenda fundadora de Roma de Rômulo e Remo sendo amamentados por uma loba e as sete aldeias de pastores Sabinos subjugados pelos Etruscos, reunindo-as numa Cidade-Estado. Na sequência associaram-se os Itálicos nativos da península somados aos Helenos emigrados da Grécia. Estavam assim postos os fundamentos étnicos, culturais e políticos da República Romana. A amálgama dessas três vertentes se consolidaria na “Romanidade”, obedecendo ao ritmo e às leis que comandam a dinâmica histórica a médio e longo prazo. Naquele cenário no qual ecoavam na lembrança os discursos inflamados de Catão o Velho repetindo no plenário em silêncio a sua declaração mais famosa: “ceterum censeo, Cartago esse delenda” ou “repito mais uma vez, julgo que Cartago deve ser destruída”. Podem-se ouvir também os gritos de desespero dos moradores de Roma, gritando com a aproximação do exército de Aníbal: “Hannibal ante portas – Anibal diante das portas!”. Foi nesse cenário também em que Cícero pronunciou as imortais Catilinárias, discursos de acusação no processo contra Catilina. “Quo usque tandem Catilina abuteres patientia nostra. Até quando Catilina abusarás da nossa paciência?” Nos círculos literários liam-se e declamavam-se as obras dos clássicos como as Eclogas, Georgicas e Eneida de Virgílio; As Odes, Ars Política e Sátiras de Horácio; Heroides, Ars Amatoria, Amores de Ovídio; De Germania de Tácito; As Comédias de Plauto; De Bello Galico e De Bello Civile de Cesar; a Historia Naturalis de Plínio, o Velho; o relato ao imperador Trajano sobre os cristãos da Bitínia e o Ponto (atual Turquia) onde era governador.

Senti uma sensação estranha ao entrar no Coliseu cenário dos espetáculos de crueldade desumana dos gladiadores ou pessoas lutando com leões e a plateia aplaudindo embriagada pelas cenas de horror que aconteciam na arena. Não se podem esquecer os espetáculos apoteóticos da entrada triunfal dos combatentes voltando vitoriosos dos campos de batalha pelo Império afora, as pistrinas ou moinhos manobrados por escravos. Em resumo, foram esses os pensamentos e imaginações que me acompanharam todo aquele dia em que percorremos o cenário do centro de poder de um Império consolidado durante 12 séculos e que legou o código do Direito Romano, até hoje uma das bases do ordenamento jurídico da cultura ocidental.

O dia seguinte foi todo reservado para visitar o Vaticano. Desembarcamos no terminal do ônibus para entrar na “Via della Conciliatione” avenida que dá acesso à praça de São Pedro. A vista do conjunto com a colunata de Bernini abraçando a praça, no fundo a catedral de São Pedro e no centro da praça o emblemático obelisco, formam um cenário que definiria como belo grandioso, tanto pela amplitude do espaço quanto pelo estilo arquitetônico da colunata e no centro a majestosa catedral encimada pela imponente cúpula conhecida em todo mundo. Vamos por partes para não embaralhar a harmonia daquele cenário conhecido pelo mundo afora como o símbolo maior da história da Igreja Católica Romana. O obelisco no centro da praça merece algumas observações. O monobloco de granito vermelho de Assuã de 40 metros de altura foi buscado pelo imperador Calígula, pelo que se deduz originário de Heliópolis do templo de Pilone de Rá durante o reinado do faraó Amenemés II. A intensão de Calígula foi erguê-lo no centro do novo circo sendo por ele construído em 37 d.C. Naquele circo São Pedro seria martirizado e por isso o obelisco seria preservado no local original quando da demolição do circo de Calígula. Não há sinais de hieróglifos egípcios apenas uma dedicação dos imperadores Augusto e Tibério mandados gravar por Calígula. Em 1586 o papa Sixto V mandou remover o obelisco para o centro da praça de São Pedro. A bola de ouro contendo as cinzas de Júlio Cesar foi retirada do topo e transferida para o museu de Roma. Em 1660 Bernini construiu as colunatas em volta da praça de São Pedro.

O seguinte passo foi a visita ao interior da basílica de São Pedro. Não é possível descrever as emoções que tomam conta do visitante ao percorrer aquele enorme templo com o altar mor, sustentado pelas quatro coluna emblemáticas, erguido sobre o túmulo do apóstolo escolhido a dedo pelo próprio Cristo, encarregando-o para consolidar os fundamentos da sua Igreja que, apesar dos pesares mantêm-se em pé há mais de 2000 anos. Com toda a justiça é preciso reconhecer a validade expressa na canção do mundo católico: “Tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Depois de uma caminhada pelo restante da basílica foi o momento de descer ao subsolo e caminhar entre as fileiras de dezenas de sarcófagos dos papas entre eles autênticos santos e outros nem tanto. Não nos cabe emitir juízos sobre os que lá jazem pois, é preferível adotar o ditado: “De mortuis nihil nisi bonum” – “Dos mortos só se lembrem coisas boa” e, se não há nada a louvar sugiro recorrer a outro ditado: “Louvar não posso, criticar não devo, por isso calo-me”. Em seguida foi a vez de dar uma passada na Capela Sixtina, palco dos encontros da cúpula da Igreja como sínodos e concílios para garantir a Fé, a disciplina e diretrizes pastorais para toda a Igreja. Nesse recinto acontece também a reunião dos cardeis por ocasião da escolha de um novo papa.

Depois da Capela Sixtina foi a vez de dar uma rápida passagem pelos museus do Vaticano. Depois de almoço na Via della Conciliatione a Inez e eu fomos acomodarmos na escadaria à esquerda da entrada da basílica para observar a movimentação na praça e mais uma vez admirar o obelisco no centro. A última programação daquele dia memorável foi uma visita à “Pietá” no seu recinto vigiado com o rigor que merece sua importância como obra de arte mas, principalmente, pelo significado histórico para a Igreja e, porque não, para a tradição judaico-cristã como um todo.

Os pedreiros que extraíram os blocos de mármore da montanha encomendados por Miguel Ângelo, provavelmente não tinham a menor ideia de que o artista esculpiria a famosa “Pietá”, o “Moisés” e o “Davi”. Vivi a experiência ímpar de ficar recolhido em silêncio em frente à “Pietá” protegida com vidro blindado no seu recanto no Vaticano. A música suave de fundo foi um estímulo a mais para despertar todo o sentido histórico e todo o simbolismo humano e religioso incarnado naquela obra de arte esculpida num bloco de rocha nobre oferecido pela mãe terra, melhor, buscado no quintal da “nossa casa”. Os traços do rosto marcados pela dor, mas não pelo desespero, da mãe da cristandade, com o filho morto nos braços, o corpo massacrado e o rosto maltratado e, contudo, sereno depois de cumprida a missão da Redenção. Recolhido no canto do recinto, com esse cenário na minha frente e a música inspiradora de fundo, deixei correr livre a imaginação. Miguel Angelo foi capaz de desvelar de um bloco de mármore bruto, o cenário que marca o epicentro dos séculos e mais séculos da gênese da civilização judaico-cristã. Não menos significativo e sugestivo vem a ser a escultura de Moisés também revelada num monobloco de mármore pelo mesmo artista. A figura de Moisés impressiona por retratar o personagem que, segurando as tábuas do decálogo, símbolo da revelação do norte ético e moral que deveria orientar a conduta de qualquer ser humano que mereça este nome. Diz a tradição que, concluída a obra e observando a sua perfeição, o artista teria dado de leve uma martelada no joelho do personagem de sua obra e feita a provocação: “Parla Moises – Fala Moisés”. Não menos emblemático como simbolismo histórico, vem a ser o “Davi” do mesmo artista esculpido também num bloco de mármore.

Depois da visita à Pietá descemos a Via della Consolatione até o castelo do Anjo na margem direita do Tibre. Não deu para entrar pois estava fechada para a visitação pública. O Castelo do Anjo começou a ser construído pelo imperador Adriano em 135 e concluído por Antonino Pio em 139. Sua finalidade inicial foi servir de mausoléu da família imperial mas passou a abrigar instalações militares. Durante a peste que dizimou a população de Roma, o papa Gregório teve a visão de um anjo acima do castelo colocando a espada na bainha, sinalizando o fim da epidemia. Durante a Idade Média serviu de fortaleza para os papas e nos movimentos de unificação como prisão. Descansando num banco à beira do Tibre repassei mais uma vez na memória a história do Império Romano e seu significado para a história posterior da civilização do ocidente, suas conquistas, sua expansão por todo Mediterrâneo e mais além, sua estrutura política e militar e, de modo especial a legislação que ainda hoje pode ser encontrada como base e referência do Direito, também do Brasil. O final da tarde foi dedicado a uma rápida passada pela praça do Quirinal e seu conjunto de palácios e residência do presidente italiano. Em tempos passados foi residência de verão dos papas e é uma das sete colinas sobre as quais se consolidou a cidade de Roma.

No dia seguinte viajamos de trem para uma vista à histórica à cidade de Tívoli nas proximidades de Roma. Pela sua importância histórica e arquitetônica foi declarada patrimônio mundial da humanidade. Passamos o dia percorrendo as ruas e ruelas da cidade com vistas para a planície em direção a Roma. Dois ícones arquitetônicos envolvendo testemunhos e personagens da história que começa com o imperador Adriano que mandou construir a Villa Adriana, um complexo residencial imperial no século II d. C. Durante a Idade Média a Villa Adriana foi saqueada sobrando praticamente somente ruínas. No século XVI o filho de Lucrécia Borgia, neto do papa Alexandre VI, construiu a Villa d`Este utilizando o material que sobrou da Villa Adriana. Quem se empenhou de modo decisivo nessa obra foi o cardeal Ippolito decepcionado por não ter sido eleito papa. Como prêmio de consolação foi nomeado governador de Tívoli. Acomodados num banco na sombra de grandes árvores, frente a frente à cascata que, por assim dizer, brota dos fundamentos da Villa, mais esse fragmento da história enriqueceu e fez valer a viagem a Roma.

Com a visita a Tívoli estava concluída a programação de visitas a Roma e na manhã seguinte voamos do aeroporto de Roma até Praga onde no dia seguinte me cabia falar sobre a imprensa em língua alemã no sul do Brasil em mais um encontro de historiadores no Instituto Ibero-americano da universidade Carolina. Detalhes Sobre a universidade, a cidade e seus monumentos e parque, já foram lembrados mais acima quando da primeira viagem a Praga. Encerrada a programação oficial do simpósio programamos para o dia seguinte uma viagem de trem até a cidade de Bad Schandau nas margens do Elba a meio caminho de Dresden na Alemanha. Não visitamos Dresden por que não havia como retornar no mesmo dia a Praga pois na manhã seguinte embarcaríamos no trem para Munique e, como dispúnhamos de apenas de um dia, conhecer pelo menos o centro da capital da Baviera. A primeira caminhada foi para a imponente catedral. O que mais chamou a minha atenção foi o memorial com a sepultura dos arcebispos da diocese. Paramos uns bons minutos na frente da lápide do cardeal Michael Faulhaber, arcebispo de Munique no período do regime nazista. Ficou famoso pela sua oposição corajosa ao nacional socialismo. Hitler e sua Gestapo não tiveram a ousadia de prendê-lo e confina-lo num campo de concentração por temerem uma reação em massa não só de Munique como da Baviera toda predominantemente católica. Só para lembrar, uma situação semelhante enfrentaram os nazistas na capital da Vestfália com o cardeal Clemens von Gallen, conhecido como o “Leão de Münster”. Depois da visita a catedral foi a vez de localizar numa rua próxima a igreja dos jesuítas com o “Bürgersal” para fazer uma oração junto ao túmulo do Pe. Rupert Meyer, conhecido como apóstolo de Munique. Na primeira guerra mundial ele servira como capelão na frente de combate na França onde perdeu uma das pernas. Pelo seu heroísmo e dedicação aos combatentes foi distinguido com a Cruz de Ferro, a mais alta condecoração concedida aos heróis nacionais. Durante o período do nacional socialismo considerado como inimigo do regime por presidir uma Congregação Mariana de 6000 homens e Munique e sem temor desfilava com eles, feitos uma tropa de assalto pelas ruas de Munique. Sabia perfeitamente que suas homilias e sermões era vigiadas pela polícia do regime mas, não se intimidou até ser preso e confinado no mosteiro de Ettal. Terminada a guerra voltou a dirigir a Congregação de homens até que em primeiro de novembro de 1945 foi acometido por um enfarte fulminante em plena homilia no púlpito da igreja dos jesuítas onde se encontra sepultado. A fama do heroísmo do Pe. Meyer fez dele um exemplo de vida e continua sendo, passados mais de 70 anos. Depois de uma passada rápida pela universidade Maximilian nos recolhemos ao hotel Itália para no dia seguinte viajar de trem até o aeroporto de Frankfurt. Depois de uma viagem tranquila até São Paulo, Porto Alegre, São Leopoldo foi concluída também essa viagem tão cheia de surpresas e vivências carregadas de simbolismos e rica em novos conhecimentos.